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Artigo publicado no Portal do Envelhecimento - 
Mar.de 2014. Disponível em: 


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Artigo publicado no Portal do Envelhecimento - 
Jan.de 2014. Disponível em: 

http://portaldoenvelhecimento.org.br/revista-nova/index.php/revistaportal/article/view/430/430



Livro Broa Prosa.


Lembranças...


O passado... Ainda que não tenhamos a exata percepção de sua presença em nossas vidas e que, por vezes, lutemos para esquecê-lo, ele está aqui, palpitante, cristalizado em cada gesto, palavra, pensamento.

Assusta-me o reflexo de meu rosto no espelho quando revela o sorriso de minha mãe, o olhar de meu pai. Ao observar meus irmãos sentados, identifico igual curvatura em suas costas e o mesmo gesto de erguer a sobrancelha como quem disfarça uma traquinagem.

Os trejeitos incômodos de meu pai transportam meus tios, minha avó e fazem-me perceber o quanto suas ações são, naquele instante, involuntárias, inconscientes.

As palavras, muitas vezes duras, de minha mãe, escapam-me à boca com naturalidade e espontaneidade, trazendo-me abrigo.

Minha voz confunde-se com a de minha irmã... Incrível como nós, crianças tão desiguais no passado, tornamo-nos mulheres tão semelhantes, de gargalhadas idênticas, rugas parentes e valores similares.

Meus filhos traduzem o que foi meu irmão quando menino...

Há maneiras de passar o café, arrumar a mesa, preparar um alimento, cultivar um jardim, serrar a madeira e empilhar tijolos que obedecem aos rituais de outrora.

Quando menina, adorava abrir uma caixinha de joias antiga de minha mãe... Lá havia colares, brincos e pulseiras curiosas. Lembro-me de um pingente em formato de borboleta cor de vinho, com desenhos coloridos e frisos dourados... Pesado e indiscreto, estava sempre pendurado em meu pescoço.

Minha mãe permitia que explorássemos tudo, exceto, um relógio que fôra de minha avó. Era redondo e miúdo, de armação prateada, fundo branco com números gravados em algarismos romanos pretos. Os ponteiros, também prata, não se moviam... A pulseira, já bem gasta pelo tempo, era de couro escuro. Muitas vezes, sem que ninguém percebesse, colocava-o no pulso e me escondia embaixo da cama, por alguns minutos... Ali, eu ficava mais perto de vovó, de minha história, de mim mesma.

Narrativas...

Vó Francisca era filha de imigrantes Italianos. Lembro-me de sua casa no jaçanã, em São Paulo. Ali ela criava galinhas, cultivava horta, pomar... Seu quintal expunha a necessidade de adubar o alimento para garantir a sobrevivência... Herança da guerra! Meu avô era pedreiro e trabalhava duro para manter a família. Mamãe nos conta que à noite, ela e seus seis irmãos se deliciavam com sopa de quirela de galinha... Era tudo!

Vó Ignácia nasceu no sertão do nordeste. Ficou viúva com 32 anos de idade, vendeu tudo o que tinha e veio para São Paulo com seis filhos pequenos e um na barriga. Abriu uma acanhada venda no Mercado Municipal e do comércio criou sua prole. Papai relata que certa vez, perdeu um par do tênis e ficou meses indo à escola com um pé calçado e outro descalço.

São histórias que nos contaram e que serão contadas a nossos filhos, netos, bisnetos... Histórias que falam da gente, que nos tornam indivíduos e, ao mesmo tempo, povo.

É inegável a importância que o contar histórias ocupa na sociedade... A narrativa oral cria imagem ao não vivido, ao que passou, ao que está por vir, ao que poderia ser. Possibilita o encontro com o desconhecido, com o inabitado, inatingível, fornece- nos a compreensão do mundo e de nós mesmos, ao mesmo tempo em que abre caminho para outras possibilidades. Ao narrar, as vivências são resgatadas da efemeridade individual e lançadas à imortalidade coletiva.

Vivências como a de meu sogro que viajou por quatro anos sobre um carro de boi para estudar na cidade que ficava a 40 km de onde morava. Meus filhos nunca viram um carro desses de perto, mas o conhecem... E arrisco afirmar que podem ouvir o ruído da roda cada vez que meu marido lhes conta esta história. Eles escutam atentos, encantados, porque é bonito e porque estamos falando deles também.

Não conheci minha sogra, mas sei que tocava acordeão numa rádio. Figura fascinante! Meus filhos sempre que veem alguém tocando sanfona lembram-se da avó que idealizam e que se materializa nos acordes. É uma parte deles que ressoa naquele instrumento e isso só acontece porque lhes contaram.

Narrar é uma atividade inerente ao destino do ser humano que não encontra vida onde não há história. A cultura e tudo o que sabemos, não inauguramos a cada dia, mas recriamos, refazemos. As correntes do passado desaparecem na aparência, mas são revividas num objeto, lugar, pessoa - resquícios de outras épocas... Aquilo que não conhecemos do mundo pode chegar-nos pela memória dos que já viveram. Detalhes do mundo perdido podem ser recuperados pela narrativa oral de nossos antepassados.

As pessoas sempre contaram seus medos, anseios, crenças, viveres, fossem viajantes em frente à lareira, avós na cadeira de balanço, pais na beirada da cama, vizinhos na calçada, amigos na varanda. Desde muito tempo a narrativa oral permeia as relações pessoais, transmitindo e conservando a cultura dos antepassados.

Daí a importância da narrativa oral... Ela transmite a sabedoria dos povos, nos localiza no tempo e espaço, desvenda quem somos, de onde viemos e nos indica um caminho. Ela aproxima as gerações e valoriza a importância do envelhecer para a sociedade.

Para Walter Benjamin, a arte de narrar está em vias de extinção e são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. A arte de contar histórias decaiu porque decaiu a faculdade de intercambiar vivências, porque matamos a sabedoria. O mundo da técnica desorienta a experiência que passa de boca em boca.

No mundo abreviado e provisório, em que os laços familiares e de amizade são instáveis, as moradas passageiras, os trabalhos temporários e todo o resto descartável, a narrativa oral – fonte de experiência, sabedoria e conhecimento - torna-se cada vez mais uma perda de tempo, ou um “tempo perdido”.

As oportunidades de narrar estão desaparecendo. Foi-se o tempo em que o tempo não contava... O adulto está aprisionado em seu trabalho, a criança hipnotizada pela tecnologia, o jovem reside no mundo virtual e o idoso, fonte de onde jorra a essência da cultura, não encontra ouvidos atentos.

Os tempos mudaram e a figura do contador transforma-se no monitor. As interações são substituídas pelo isolamento e o novo, o urgente, atropelam o ancestral.

Neste contexto, o idoso passa a ser visto cada vez mais como ultrapassado e não há lugar para a voz madura. A sociedade do novo e do breve não vislumbra o valor intrínseco do envelhecimento, não tolera o idoso e este, afastado do sistema produtivo não encontra oportunidades de convivência.

Porém, não há presente sem passado e não há fonte mais valiosa da história do que aquele que nela viveu. Ecléa Bosi diz que o velho tem uma espécie de obrigação social: a de lembrar, lembrar, lembrar... Realizar a religiosa função de unir o começo e o fim. Para o adulto ativo memória é fuga, arte, lazer, contemplação, para o velho, é trabalho. O que foi a vida dos velhos é um constante preparo e treino para quem irá substituí-los.

Meu pai escreve contos... Começou este afazer há poucos anos. Adoro ler seus escritos, eles falam de pessoas desconhecidas, sentimentos alheios, lugares imaginários... Mas é incrível como meu pai e seu passado se inscrevem naqueles textos. Num movimento irrefletido de resgate de si mesmo ele resgata cada um de nós, seus descendentes. Imagino que se papai resolvesse escrever sua história, não a faria com tanta fidelidade como o fazem seus contos fantásticos.

Os pais envelheceram... Quanta bagagem eles carregam, quanta história carregaremos ao longo de nossas vidas... Histórias que desaparecerão se não forem transmitidas aos descendentes... As diferentes gerações precisam dialogar e para isso é necessário enriquecer as relações afetivas e valorativas entre elas.


Oficina de Contação de Histórias...
Foi com essa preocupação que em junho deste ano apresentei um projeto à Secretaria Municipal de Cultura de Ourinhos o qual tinha por objetivo a realização de uma oficina cultural de resgate das histórias de vida de sujeitos com mais de sessenta anos. Através de um edital de licitação de fomento a produções culturais o projeto foi contemplado e no final de agosto iniciei o trabalho.

Na ocasião, conheci um simpático grupo que já participava de uma oficina cultural... Para ler o mundo. Algumas ali aprendem a escrever seu nome, outras, querem aprimorar a ortografia e todas buscam e distribuem alegria, amizade, vida. A professora Lídia conduz aquelas pessoas com afeto, sabedoria e sensibilidade, tudo regado ao chá das três, com direito a bolo, pipoca e biscoito.

Eu estava interessada em suas histórias, em suas experiências, no diamante bruto que elas guardavam dentro de si e que precisava ser lapidado pelo espírito de outras pessoas.

Que empenho teriam aquelas pessoas em me contar seu passado? Quais palavras eu usaria para comovê-las? Como convencê-las de que o trabalho da lembrança é precioso?

Acostumadas à invisibilidade e à opressão, não compreenderam, de início, o sentido da oficina que eu propunha. As histórias estavam acomodadas num lugar confortável e não havia porque mudar a poltrona de lugar. Os documentos sempre estiveram arquivados, porque mexer em coisa velha? Minha vida sofrida? Lembrar para que? Eu não sei falar... Eu não tenho história...

Devagar fomos amenizando algumas tensões. Investimos durante um mês no vínculo de amizade e confiança que serviria de ambiente propício para as histórias fluírem. Nesse período eu insistia na importância e encanto de cada história... Porque era um patrimônio único!

Ao longo do processo, outras pessoas entraram para o grupo, algumas desistiram. Eu contava minhas histórias... Elas gostavam e, devagar, começaram a se lançar. Sem pressa, foi notável a transformação da reserva em mensurável valor.

Narravam acontecimentos vividos ou contados por outrem. Havia ali uma fonte inesgotável de lembrança... Histórias que falavam de relações familiares, de trabalho, de hábitos, costumes, crenças e nos permitiam penetrar num tempo e espaço que não vivemos. Um mundo habitado por seres imaginários como lobisomem, saci, assombração e outros reais como cobras peçonhentas. Seres que, se por um lado, alimentavam o medo, por outro, fortaleciam a fé e a coragem.

Interessante a presença da tradição oral na vida delas. Muitas histórias que ouviram contar, narravam como se delas tivessem participado. Contavam os fatos com tanta comoção e detalhamento que talvez não soubessem mais precisar o ponto exato em que essas lembranças entraram em suas vidas.

Ao recordarem, foram individualizando suas histórias e lembrando aquilo que para elas tinha ficado, porque havia significado. Escolheram o que gostariam que perpetuasse em suas vidas. Porém, ainda que cada uma tivesse sua história singular, com o tempo, uma única história coletiva se compunha. Eram mulheres nascidas na década de quarenta, filhas de lavradores ou de ferroviários que vieram para Ourinhos em busca do ganha pão. Nascidas no interior de Minas, Paraná e de São Paulo, viveram e trabalharam na roça desde meninas, moraram em casas de sapé, tomaram banho na gamela, destroncaram frango para comer e brincaram com bonecas de milho... Fortes mulheres da terra!

Em outubro comecei a registrar estas histórias. Gravava-as em áudio e, posteriormente, transcrevia suas falas, exatamente como pronunciadas. Que surpresa a minha quando escrevi a primeira história - parecia-me outra. Engraçado a força que a palavra escrita tem!

Percebi que durante os encontros eu estava contaminada pela circunstância - risos daquele que narra, comentários dos que ouvem. Num momento posterior, quando encontrei-me a sós com as palavras do narrador e pude contemplá-las como leitora, experimentei sentimentos e percepções que se esquivam da realidade. Ao dar existência escritural à fala, tomei a experiência daquelas pessoas como matéria prima para a reflexão e compreensão de minha própria vida.

O mesmo aconteceu com elas quando li para o grupo a primeira história transcrita. Saborearam suas vidas como expectadoras e perceberam o significado do registro de suas experiências... O valor intrínseco de suas vivências estava declarado. A partir dali, brotaram histórias sem parar!

Entendi que não deveria comentar as narrativas ou alterá-las. As explicações, contextualizações, opiniões, roubariam do leitor a possibilidade de interpretar aquilo que lhe faz sentido e de atingir uma amplitude que transcende as impressões de quem escreve. A época e as personagens não estão explicitadas de forma clara no texto, porque as histórias falam por si e conversam coisas diferentes com cada um de nós.

Tudo o que foi narrado está escrito, porque é importante. E agradeço a coragem destas mulheres em me conceder o direito de publicar suas memórias contadas oralmente e transcritas tal como colhidas no fluxo de suas vozes, sem que elas tivessem a liberdade de quem escreve num papel em branco e que pode apurar, retocar, refazer.

Procurei ser fiel à pronúncia das narradoras, por sua melodia e beleza e porque conserva a cultura, revelando quem somos. Alguns ajustes foram realizados apenas com a intenção de manter uma continuidade ao texto principal. Perderam-se os gestos, as entonações, os olhares, risos, pois a fala é provisória... Mas a escrita perpetuará as lembranças.

Escolhi alinhavar as histórias com uma narrativa fictícia, paralela às contadas pelas pessoas reais que participaram do grupo. Tal narrativa é leve, coloquial e jocosa, porque esse foi o clima que permeou nossos encontros. Ela serve de apoio e continuidade, mas não pretende ser o foco do texto, nem tampouco amenizar a riqueza contida em cada relato oral.

É um primeiro e breve ensaio de um trabalho embrionário e que não se esgota, porque sua matéria prima transborda em cada um de nós. Eis o trabalho do narrador, que como o arqueólogo, cava a terra em camadas e vai descobrindo a história da humanidade, muitas vezes, a própria história.

Creio que a cristalização do trabalho neste conciso livro penetrará naqueles que narraram suas histórias e naqueles que delas apropriarão, transformando a todos.

Por muito que se deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda e o texto que ofereço são lembranças de pessoas comuns que mergulharam em minha vida, assimilaram-se à minha própria experiência tornando irresistível recontá-las... Espero tê-las tratado com o devido apreço.



Cinthia Lucia de Oliveira Siqueira.

Novembro de 2010.